Por Pedro Galante
Diz a lenda que Miller desembarcou trazendo duas bolas: uma em cada mão. Mas, como era o futebol que acabava de chegar ao Brasil?
Afortunado é aquele que compreende a causa das coisas. É com essa frase que Jonathan Wilson inicia o livro A pirâmide invertida; para muitos, a bíblia da tática no futebol. Quando li o livro pela primeira vez, em 2017 – sem entender muito, percebo eu relendo agora, em 2020 – me interessei bastante pela frase, mesmo sem (outra vez) entender muito bem o que ela dizia. Não que eu exatamente compreenda tudo agora, eu compreendo melhor. Ou acho que compreendo. Talvez eu volte em 2023 para escrever sobre essa mesma frase, e esse é o ponto: compreender a causa das coisas (no futebol e na vida) é um processo, que não acaba exatamente. Amanhã haverá algo novo que impedirá que o pensamento de hoje exista como ele é.
Toda essa introdução não é só sobre mim e minhas leituras de A pirâmide invertida – mas, se acostume, essa é uma empreitada, antes de tudo, pessoal – mas também sobre certas noções do nosso imaginário popular a cerca do futebol. Pode se dizer que a história do futebol é um embate continuo. E não fui eu que escrevi isso. São palavras do próprio Jonathan Wilson. Na verdade, ele se refere a história da tática. Mas o que eu percebo – e aqui entra minha crítica À pirâmide invertida – é que a tática não é uma dimensão descolada, ou superior. A tática é precisamente o futebol. Mas o futebol não é só tática.
A ideia nesse – e nos futuros – texto é recontar a história do futebol brasileiro; com um viés tático, mas sem se fechar nisso. Não que a gente precise desse processo para conhecer o futebol brasileiro. Isso, na verdade, é bastante fácil: basta ver uma criança brincando de bola. Mas, talvez, essa visita nos leve a uma melhor compreensão – não definitiva. Se não, pode ser apenas divertido. Na melhor das hipóteses, quem sabe, um pouco de cada coisa.
O futebol antes do Brasil
O futebol, sabemos, é uma criação inglesa. Ao menos o futebol como conhecemos, nas suas regras mais formais. No entanto, no principio não era nada parecido com o que conhecemos: uma coisa caótica e disforme, violenta e agressiva. Provavelmente pelos ideais militares e de afirmação de uma masculinidade inquebrável da sociedade inglesa. Esse era, sobretudo, um impulso.
Passado o tempo, o jogo foi se organizando e se tornando mais palpável, sem perder, no entanto, aquela essência caótica. Passado o tempo, o jogo foi se expandindo, sendo absorvido por outros povos. Os escoceses tornaram o jogo mais ameno, pausado e coletivo. O seu estilo foi apelidado de tecelagem, pois os passes desenhavam um zigue-zague de agulha no processo de costura.
Era esse o cenário: os ingleses, especialmente os do Sul, pregavam a velocidade e o pragmatismo, a vitória pessoal através da condução. Os escoceses optavam pela paciência e construção, o esforço do coletivo, unido pelo artificio do passe. E então o futebol chega ao Brasil.
O futebol inglês no Brasil
O que chegou ao Brasil foi o futebol Inglês, com I maiúsculo. Não só na forma e no estilo, mas também na administração. O jornalista Marcos Guterman, em O futebol explica o Brasil, descreve melhor esse cenário. Em linhas gerais: o futebol era praticado apenas por ricos, que o queriam amador, puro, intocado de tudo que desvirtue o mais elevado amor pelo esporte. Isso tudo disfarçava uma segregação social, que, no contexto brasileiro, era também racial.
No livro citado acima, Guterman diz que Charles Miller, que conheceu o futebol em Southampton (ou seja, no sul da Inglaterra), na Banister Court School, preteria o “dribbling” ao “passing.” É importante contextualizar essa informação: o drible que Charles aprendeu na Inglaterra está mais para condução desviando dos adversários, mais possivelmente, trombando nos adversários, do que o drible insinuante que hoje caracteriza o jogador brasileiro. Dizer simplesmente que Miller era adepto do “dribbling” cria uma ilusão de que o futebol no Brasil era brasileiro desde o princípio.
Na verdade, o futebol no Brasil se fez brasileiro. E ainda falta falar de um ingrediente importante.
O vovô Jimmy Hogan
A história de Jimmy Hogan já foi contada nesse mesmo site por este que vos escreve (você pode lê-la aqui) Hogan era um inglês que preferia a maneira escocesa de jogar e encontrou na Europa continental, repleta de jovens universitários, o solo perfeito para plantar a semente do jogo de passes.
A semente criou raízes e deu bons frutos: o Wunderteam, histórica seleção austríaca e, mais tarde, os Magicals Magyars, a lendária Hungria que venceu a Inglaterra em Wembley. Times de trocas de passes e movimentações muito bem organizadas dentro de uma estrutura coletiva: o que se chamou de escola danubiana.
As turnês de times e a vinda de jogadores e técnicos escoceses não teve a força suficiente para vencer (ou se mesclar com) o estilo inglês. O futebol de passes ganhou corpo realmente com a vinda de dois judeus húngaros foragidos: Dori Kürschner e Emerich Hirschl.
A contribuição de ambos é mais relevante na forma do que no estilo de jogar, ainda assim, tem um valor simbólico de chegada da escola danubiana na América do Sul, que, veremos a seguir, é bem importante na construção da forma sul-americana de jogar. É por isso que Jonathan Wilson conclui que Hogan é avô do futebol brasileiro.
Na verdade, os pais e avós desse estilo não são feitos de carne e osso, mas a simbologia sustenta a declaração. Guztáv Sebes, treinador da Hungria de 53, diz que quando a história do futebol húngaro for contada, o nome de Hogan deve ser escrito em letras douradas; no caso do futebol brasileiro, não é para tanto. Hogan foi um dos primeiros treinadores a fundar algo parecido com uma ideologia no futebol e a escola danubiana moldou muito do que é o futebol de hoje, em campo e, especialmente, fora dele. Por isso, toda menção é válida.
O estilo sudaca

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A escola danubiana tomou o lugar dos escoceses como representante máxima do jogo de passes. O embate com o jogo direto inglês continuava e só foi acabar em 1953 com a vitória de 6 a 3 da Hungria sobre a Inglaterra na própria terra da rainha. Enquanto isso, a América do Sul engatinhava no futebol bebendo de ambas as fontes e contando com suas próprias particularidades.
O Uruguai e a Argentina apareceram primeiro: receberam o futebol antes e assistiram à profissionalização e massificação do jogo logo depois, processos que tardaram a acontecer em terras tupiniquins. O Brasil, no entanto, surgiria alguns anos depois como a grande seleção do continente, talvez, justamente por esses atrasos de trajetória na difusão do futebol. Mas essa é outra discussão. Vamos falar desse novo estilo que surgia para encantar.
Era, de fato, uma mistura do jogo direto com o jogo de passes. Os sul-americanos gostavam do passe, mas ele não era uma linguagem que conectava e dava coesão a um coletivo como no jogo danubiano, ao passo que também gostavam de conduzir a bola, mas não como o “dribbling” que Guterman atribui a Miller, era bem menos físico e mais artístico, quase um malabarismo.
A arte e a diversão eram a linguagem desses novos astros. Em uma passagem de Sobre heróis e tumbas, do argentino Ernesto Sabato, para expressar esse espirito, um dos personagens conta uma história mais ou menos assim: “Certa tarde, no intervalo de um jogo, um jogador disse a outro: ‘Cruze para mim, que eu vou fazer um gol.’ O segundo tempo começou, o cruzamento veio e o jogador marcou. Correu em direção ao outro, com os braços abertos, gritando: ‘Está vendo?’ e este respondeu ‘Sim, mas não estou me divertindo’.”
Como essas práticas da picardia, do dionisíaco criaram a mais fascinante escola de futebol que já existiu, e como esses países seguem produzindo craques até hoje será o tema do próximo texto.
A ideia é manter uma periodicidade semanal, no entanto, a produção depende da pesquisa, das descobertas e das reflexões, e essas têm um ritmo próprio.
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